sábado, 11 de febrero de 2012

A MORTE PREFERE COCA-COLA

- Isso me parece sério – diz meu amigo André ao meu lado.

- Tá doendo? – pergunta meu outro amigo, Ibraim
- Tá sim – responde André.
- Então é melhor ir ao hospital – sugiro por final.
Minha mãe uma vez disse que pronto-socorro de hospital estadual é tudo a mesma coisa, e concordo com ela. Muito desarrumado, muito sujo (especialmente em tons de vermelho sangue) e muita gente amontoada e gemendo.
Chegamos ao hospital São Paulo e fomos pegar nossa senha. Sentamos.
Dou uma bela olhada nas pessoas do saguão e vejo seus rostos fechados, alguns retorcidos e a falta de esperança pairando em volta deles. Noto também um vulto alto e negro que se destacava do resto das pessoas por carregar uma foice grande e reluzente. Ninguém parece notar sua presença. O vulto encara uma velha sentada na mesma fileira que nós, a velha olha de volta e balbucia algumas palavras, ela a toca no rosto com seus dedos ossudos, a velha dá um suspiro de alívio e morre.
Um homem ao lado grita: Meu deus! Ela morreu!
Enquanto os médicos chegam pra examinar a velha, uma comoção toma conta das pessoas no lugar e elas começam a falar alto e num tom assustado de como aquilo tudo era horrível e de como a morte era ruim. Eu por outro lado acho que a morte não é ruim, tudo o que vem antes dela sim; e se tem alguma coisa totalmente neutra nesse mundo é a morte. Ela simplesmente chega, faz o que tem que fazer e vai embora, tudo muito simples, rápido e fácil, sem sentir nada por isso. E foi exatamente o que ela fez ali.
Depois de um tempo quando a comoção das pessoas passou começaram as piadinhas infames para com o sofrimento das outras pessoas. Passamos a dar nota ao estado delas. Quando maior a nota, pior o estado.
Muitos carros chegam ao hospital (nos carros chegam os piores pacientes) e isso era péssimo, porque quem chegava de carro já era encaminhado direto pra um médico. Um carro bonito, novo e elegante chega e esperamos pra ver quem desce dele. Era um velho que julgamos ser o próprio Tutankamon, e só não parecia morto porque gritava bastante de dor. Pra esse nós demos nota 10, o que foi a única unanimidade da noite. “Acho que vão mumifica-lo agora”, alguém acaba dizendo.
As notas continuam: “esse merece um 5”, “ela nota 7”. “Se liga! Ela tá melhor que a gente”. E assim as horas foram passando.
Tutankamon volta. Mas agora grita menos e parece um pouco mais vivo, e para uma múmia isso é um fato a ser comemorado. Entra no carro, ou tenta, pois ele não se curva o suficiente e bate a cabeça várias vezes no teto. Vendo a oportunidade digo: “É, rigor mortis não é fácil”. Meus amigos riem.
De repente algo me chama a atenção. Era a morte voltando. Ela balança a cabeça e vem na minha direção. Congelo na hora. Um suor frio começa a descer pelas minhas costas. Ela dá um passo à frente e eu dou um passo pra trás. Ela dá mais um passo à frente e minhas costas encostam na parede. Fico imóvel. Ela me dá uma bela encarada, do mesmo modo que a noite te encara em noite de lua cheia, só que naquela noite não tinha lua alguma. Ficou assim durante algum tempo e percebo, que na verdade, ela estava sorrindo pra mim. Sorrio de volta, pois sabia que aquela não seria a minha vez. Alguma coisa parece ter chamado sua atenção em outra sala e a vejo se afastar apressada em direção à UTI. Demoro um tempo pra me recompor. Digo pros meus amigos que foi só um mal- estar e que um pouco de ar me deixaria melhor. Essa passou perto.
Do lado de fora fico me perguntando pra quê se dar ao trabalho de ir ao hospital se vamos todos morrer de qualquer jeito.
Umas crianças de rua que estavam por ali passam por nós e sorriem pra gente. Nós sorrimos de volta. Elas, assim como nós três, eram as únicas pessoas se divertindo naquele lugar.
Chamam o nome do meu amigo. Era a nossa vez. Eu fui junto com ele, o Ibraim decidiu que era melhor ficar lá esperando.
O médico não parecia muito mais velho que a gente.
Algumas pessoas estavam na mesma sala que nós. Um cara urinava por um tubo, uma velha que parecia ser a mãe das crianças lá fora estava muito abatida e anunciou:
- Acho que vou vomitar.
- Se ela for vomitar – eu disse – acho que vomito também.
- Vamos lá Dona, nada de vomitar aqui.
Ela não vomitou e eu fiquei aliviado. Os médicos também.
Meu amigo ficou com vergonha da consulta dele. Tanta gente lá morrendo e ele de pé sorrindo. Com um calombo no peito.
Quando a consulta acabou saímos da sala em direção à recepção. No caminho vejo sangue – muito sangue – saindo do corpo de uma garota que estava sendo levada às pressas pra cirurgia. A morte vinha apressada atrás dela. Quando ela passou por mim fiz um gesto de despedida respeitoso e silencioso em sua direção. Não teria como saber se ela viu.
- E aí, como foi? – pergunta o Ibraim.
- Não foi – respondi – ele não tem nada.
- Não vou morrer por isso, o médico só me passou alguns remédios.
- Vamos dar o fora daqui então.
- E rápido.

Os personagens aqui citados são todos reais. Sobretudo a Morte. Mas apesar de não poder vê-la, eu a senti, ainda mais que ao ir embora, um barulho me chamou a atenção. Olhei em volta e vi a máquina de refrigerante se mexer sozinha, Vi também uma coca-cola cair pelo buraco sem ninguém estar por perto – ninguém parece ver ou se importar com aquilo -, então dou um sorriso, pisco e saio correndo dali.