martes, 30 de septiembre de 2008

PEQUENA PENSÃO DOS HORRORES

Já se haviam passado dois meses que eu estava em Buenos Aires nutrindo meu sonho de encontrar uma Argentina rica enquanto minhas dívidas no Brasil caducavam. As coisas estavam indo bem: arrumara um emprego, tinha um lugar descente pra dormir e tinha comida na mesa. Mas isso não iria durar muito.
Acontece que naquele mês de Julho os preços do lugar onde eu estava iriam subir por causa da temporada, mas voltariam ao normal no mês seguinte, daí eu pensei: “Bem, eu moro em qualquer outro lugar e no mês que vem eu volto pra cá”. Mas as coisas foram bem diferentes.
Minha chefe encontrara um lugar mais ou menos perto do trabalho e com um preço abaixo da média, e como a grana andava curta eu não pensei duas vezes em arrumar as minhas coisas e ir pra tal “pensão familiar”.
Cheguei ao lugar com meu amigo e pensei comigo mesmo quando vi a fachada “nada mal, nem precisava tanto”. Mal sabia eu que faltava e muito.
Apertei a campanhia e uma velha muito estranha atendeu. Não fui com a cara da dona logo de cara, nem ela com a minha.
- Você é brasileiro?
- Sou sim.
- Minha filha se casou com um e foi uma péssima experiência.
Se casar por si só é uma experiência ruim.
A pensão tinha 3 andares. No primeiro a velha morava com o marido e a filha, no segundo tinham quartos maiores e dois banheiros, no terceiro os quartos menores e só um banheiro, o lugar não tinha cozinha. Eu fiquei com um dos quartos realmente menores.
Quando entrei no meu quarto fiquei abismado. Que lugar de merda! Mas era isso ou dormir na rua. Eu realmente tive motivos pra pensar assim, e olha que eu não tenho nem um pouco de frescura, o quarto tinha 3x1,5m com as paredes de madeira compensada e o teto de isopor. Tudo o que cabia no quarto era eu, minhas coisas, uma cama menor do que eu, um armário cheio de venenos de baratas e uma cadeira que em eras passadas já fora vermelha.
Bem, era isso ou a rua. Pelo menos tinha uma janela pra rua, alguns dos outros quartos tinham janelas pros corredores.
Como o lugar não tinha cozinha o fogareiro de duas bocas ficava no corredor, tinha uma geladeira em cada andar, mas como eu não pensava em cozinhar não fazia diferença. O banheiro era nojento. A privada não tinha assento e a pia ficava sempre cheia de restos de comida, já que não tinha onde os caras lavarem a comida. Cozinha deve ser coisa de rico, só pode. Naquele banheiro peguei uma micose fodida logo nos primeiros dias que durou semanas. Pra piorar ainda teve alguém com senso de humor maior do que a maioria que começou a decorar as frestas do banheiro com pedaços de papel higiênico cheios de merda. Puta que pariu! Pelo menos tinha água quente.
Os primeiros dias foram os piores, mas como eu trabalhava passava a maior do tempo fora, só voltando pra tomar banho e dormir. Complicado mesmo eram os finais de semana, onde tudo o que eu fazia era ler e ler mais um pouco. Lia um a dois livros por final de semana, era tudo o que eu podia fazer, porque ficar de bobeira naquele frio não era uma idéia muito boa. E ainda tive a sorte de pegar um dos invernos mais rigorosos da história daquele lugar, tanto que até nevou depois de quase 80 anos. E posso dizer que as paredes de madeira e o teto de isopor não ajudaram muito. Fazia incursões diárias pra padaria comprar a minha única refeição do dia e à noite quando a fome apertava eu roubava algum leite da geladeira. Alguns chamariam isso de ato vergonhoso, eu de sobrevivência.
E as pessoas que moravam lá... Tinha um velho desdentado que todo dia quando me via falava sempre a mesma coisa:
- Que frio, não?
- É.
- Eu fiquei no seu quarto por 4 anos e quase morri de frio.
- É mesmo?
- Mudei de quarto por causa do frio, agora no que estou não tem janelas.
O quarto dele era o menor da pensão e o mais barato. Me senti com sorte. Poderia ser pior.
- Mas até o final do ano eu me mudo daqui. Vou pra um lugar melhor.
O céu?
- Claro.
E isso se seguiu por todos os dias nos dois meses em que fiquei lá. Ele não saia da pensão e vivia à base de bifes que me deixavam com mais fome. Igual o cara da pensão do Arturo Bandini, mas pelo menos ele nunca me pediu dinheiro emprestado.
O único amigo dele era o velho que morava no quarto na frente do meu. Esse não tinha nenhum dente e quando falava comigo eu só concordava porque nunca entendi uma só palavra do que ele dizia. Esse velho vivia de limpar vitrines nas lojas e o quarto dele tinha livros e garrafas de bebidas até o teto. Fiquei preocupado em acabar minha vida igual a ele.
Havia também um cara que todas as noites ouvia o Rei Roberto Carlos em espanhol, e no quarto ao lado do meu tinha a única mulher da pensão que só vi uma vez.
Mas o melhor de todos era o vizinho da direita. Mestre Davi. O cara mais feio que vi por aqueles lados. Num belo sábado estava eu deitado lendo quando alguém bate à minha porta.
- Oi, tudo bem?
- Oi.
Ele também não tinha vários dentes.
Percebi depois que as pessoas que moravam na parte de baixo pareciam muito mais saudáveis que as da parte de cima. As que moravam no meu andar precisavam de planos odontológicos urgente, e muitos de dentaduras.
- Eu estou indo ao mercado e queria saber se você não precisava de alguma coisa.
- Não. Eu estou bem, só um pouco gripado.
- Você é brasileiro?
- Sou sim.
Daí ele sorriu. Preferia que não tivesse. Aquela boca era monstruosa.
- Eu gosto de brasileiros. São todos “buena onda”.
- Bem, eu gosto de pensar que sou.
- Vou comprar um remédio pra você.
- Ok.
- Já volto.
Alguns minutos depois ele bate na porta de novo.
- Comprei essa garrafa de vinho pra você.
- Obrigado.
- Antes de dormir aqueça um pouco e beba. No dia seguinte você vai se sentir muito melhor porque o álcool mata os anti-corpos.
Eu nem me dei ao trabalho de explicar o que eram anti-corpos. Só agradeci.
- Pode deixar que eu tomo. A propósito, meu nome é Daniel.
- Prazer, eu sou Davi. Quer tomar uma cerveja?
- Claro.
Eu estava pensando em beber aquele final de semana mesmo. Minha chefe, com quem eu havia ficado por um tempo, havia me chutado naquela semana porque ao invés de procurar trabalho numa lanchonete como lavador de pratos eu fiquei na casa do meu amigo tomando cerveja, e assim eu não poderia dar um futuro pra ela. A mesma merda de sempre. Mas essa eu queria ver: "lavador de pratos brasileiro dá futuro pra garota rica argentina", só na cabeça dela.
Ficamos um tempo bebendo cerveja e conversando. O cara até que era gente fina. Ele tinha ex-mulher e filho e estava naquele lugar porque gastava todo o dinheiro dele com bebida. Não tem como não sentir compaixão por um cara desse. Pode ser o futuro de qualquer um de nós.
- Gasto todo meu dinheiro com bebida e putas.
- É o mal de todos nós.
- E tem que ser com puta mesmo. Porque mulher só quer saber de futuro.
Olha só! Até nossos problemas eram parecidos.
- Vem cá. Olha isso. – ele me convida.
E o cara me mostra o quarto. Nossos quartos eram do mesmo tamanho, mas de algum jeito sobre-humano o dele era bem mais bagunçado que o meu. E eu achava que isso era impossível.
- Olha isso. Olha onde eu moro. Vou dar futuro pra quem com isso? Não tenho futuro nem pra mim.
Ele era um cara que sabia das coisas.
Acabaram as cervejas e fomos pro bar. Depois pra outro e mais outro. Num deles saímos sem pagar a conta. Ele era definitivamente um dos meus. Só que ficava bêbado muito rápido. Tentamos jogar bilhar, mas fomos barrados porque o cara mal conseguia ficar em pé.
- Vamos pro puteiro então. Eu pago – ele disse.
Bem que eu queria, mas ele não conseguiria chegar lá. Decidi que era melhor levá-lo pra casa.
O caminho todo fui carregando ele no braço, e quando eu achava que não conseguiria mais, chegamos na pensão. Subimos as escadas, joguei ele na cama e fui escovar os dentes. Na volta dei uma olhada pra ver como ele estava. Ele estava caído no chão com a cara em cima de um copo cheio de cinzas de cigarro. Peguei o cara e o joguei em cima da cama de novo. Fui pro meu quarto e ouvi o baque dele caindo de novo no chão. Agora ele estava por conta própria.
Fiquei sem vê-lo por alguns dias, até o fatídico dia que ele me chamou pra beber de novo. Disse que não podia pois teria que trabalhar cedo no dia seguinte. Pra ele não fez diferença porque ele bebeu sozinho e ficou enchendo o meu saco a noite toda. Não só o meu como de todo mundo até às 3 da manhã. Ele gritava, cantava, batia na minha frágil parede pra eu beber com ele, mas quando ele tentou entrar na minha porta eu fiquei puto e pensei: ou eu bato nesse cara ou vou chamar alguém que tenha autoridade pra conter esse maldito. Chamei o dono da pensão, que falou um monte pra ele, desligou a luz e trancou a porta. Fazer o quê? O cara tava mais fodido que eu e me pagou algumas cervejas alguns dias antes.
No dia seguinte de manhã ele já estava acordado e pelo que parecia não se lembrava de nada. Me chamou até pra tomar café-da-manhã com ele, mas disse que estava atrasado. Desci pro andar de baixo eu fui dar uma cagada. Nisso o dono da pensão subiu , falou um monte pro pobre Davi e o expulsou da pensão. Ele ainda disse que se saísse de lá teria que dormir na rua, mas o velho não se comoveu. Nunca mais o vi.
Morei naquele lugar por dois meses, e a maioria do tempo eu passei lá lendo, bebendo e vomitando. E depois fiquei cansado de passar fome e frio e decidi que era hora de voltar e tentar alguma coisa por aqui de novo. Ganhei alguma experiência nisso tudo, algumas foram boas, mas a maioria não. Demorei mais de um mês pra me acostumar com minha cama de novo e percebi que fiz um desnível só de um lado porque a cama que eu dormia na pensão era menor do que eu e assim não dava pra me esticar direito
Ainda penso nas pessoas que estão por lá, lugar onde muitos moram há anos e será onde eles eventualmente irão morrer. Por sorte eu não.

6 comentarios:

TT Ussam dijo...

Carajo Boi, que trip loca.
Eu acho que punha fogo no bêbado pra me esquentar.

Cacete!


PS: Belo Blog!

Unknown dijo...

boa campeao!!

Anónimo dijo...

hahaha muito bom !
Muito foda seu blog!
Achei ele numa comu no clube da luta :)
Um abraço!

Anónimo dijo...

É boi...

Você sabe o que eu penso.

ahauaha

fab dijo...

texto bacana, mas meio longo pra um blog, não?

Tati Lima dijo...

Dani, tenho orgulho de ser sua irmã...